
" (...) O primeiro dia em que te vi foi nesse dia que nasci. O que é engraçado é que em todas estas últimas noites tenho sonhado com o mar. Quer dizer, é um sonho sem personagens, sem sentimentos, sem nada, só com o mar a enrolar-se e a desenrolar-se. Tenho tantas coisas comigo, que guardo comigo, que não sou infeliz: certos cheiros, certas cores, certos momentos, certas lembranças. Uma vez, por exemplo, que passeámos na Praia Grande ao pôr do sol, com aquele frio especial do fim da tarde que anuncia a noite. As manhãs da Praia da Rocha, aquela ponte de Portimão, a vista da janela da Penina, a sensação vagamente culpada de estar a fazer contigo uma coisa proibida. Lembro-me de tudo: do dia do casamento e de quando ia namorar-te, das horas no sofá, das saídas ao sábado com o Jorge. Realmente vive-se 2 vezes, nesse momento em que se vive e depois, e o que realmente tem importância são essas luzinhas no fundo da memória. Lembra-me agora um poema a propósito, um final de poema, do poeta Pedro Tamén
Aqueço-me com isto. Ao seu calor
O nosso sangue é um e amadurece
Boa-noite meu amor.
Boa-noite que amanhece.
Não penses que estou triste. Quem tem tudo isto tem de estar satisfeito (satisfeito é uma palavra que me faz lembrar barrigas cheias) e eu estou contente porque nada disto a morte me pode roubar. (...)"
António Lobo Antunes
in "D'este viver aqui neste papel descripto"
Nem sei. Não encontro palavras para descrever o que pode sentir-se, ao ler este livro.
Até agora - e li pouco mais do que até esta página -, só oiço música.
Sim, o amor é vão
É certo e sabido
Mas então, por que não
Por que sopra ao ouvido
O sopro do coração...